terça-feira, 21 de agosto de 2012

LEI DA FICHA LIMPA COMENTADA

A “LEI FICHA LIMPA” E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Foi publicada hoje (07/06/2010) a chamada “Lei Ficha Limpa”, idealizada para barrar o acesso de políticos desonestos a cargos eletivos. Trata-se da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010, que introduziu profundas mudanças na Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, casos de inelegibilidade e seus prazos de cessação (clique aqui para ver a LC 135/2010).
As alterações foram muitas, porém queremos aqui nos deter na mais polêmica delas, consistente na modificação do texto constante no art. 1º, I, “e”, da LC nº 64/90, in verbis:
Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
[…]
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; […].
Ficou, portanto, claro nesse dispositivo que a pessoa que tenha contra si decisão de órgão judicial colegiado (qualquer tribunal componente do Poder Judiciário) condenando-a pela prática de um dos crimes elencados será considerada inelegível (não poderá, portanto, concorrer a qualquer cargo eletivo).
A inovação reside justamente em não mais se exigir o trânsito em julgado da sentença condenatória, pois a experiência demonstrou que processos criminais contra políticos dificilmente chegam ao fim, exceto para reconhecer a extinção da punibilidade pela prescrição.
A grande questão que se sobrepõe é: a novel regulação é constitucional, considerando o princípio da presunção de inocência delineado explicitamente na Constituição Federal?
Primeiramente é pertinente lembrar que o art. 14, § 9º, da Constituição Federal outorga à Lei Complementar a função de estabelecer outros casos (além dos previstos na própria Carta Magna) de inelegibilidade, conforme segue:
§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Em outro prisma desponta o art. 5º, LVII, da CF, com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Diante disso surge a seguinte indagação: o art. 14, § 9º, da CF possibilita seja excepcionada a aplicação do art. 5º, LVII, por intermédio de Lei Complementar?
Lembra-se, ademais, que o art. 15, III, da CF, também exige o trânsito em julgado da condenação criminal para perda ou suspensão de direitos políticos.
Certamente mais cedo ou mais tarde o Supremo Tribunal Federal enfrentará a questão em deslinde.
Cabe-nos nesse momento apenas adiantar que nossa Corte Suprema tem até agora se posicionado intransigentemente na defesa do princípio da presunção de inocência, ao qual foi dada imensa amplitude pela Constituição Federal.
Aliás, no julgamento da emblemática ADPF 144-DF, manifestou-se o STF no seguinte sentido, conforme se extrai da ementa do decisum:
[…] RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR "OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE" - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO "CORNERSTONE" EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA [...]. (STF, ADPF 144-DF, Tribunal Pleno, rel. min. CELSO DE MELLO, j. 06/08/2008, DJe-035, p. 26-02-2010).
Diante disso, nota-se com clareza haver uma nítida possibilidade (ou até mesmo tendência) do STF considerar inconstitucional a chamada “Lei Ficha Limpa” no particular ora em análise. Aliás, lendo a íntegra do julgamento da ADPF 144 (clique aqui) chega-se até a vislumbrar que boa parte dos debates suscitados com o surgimento da Lei em comento já foram enfrentados anteriormente pelo Supremo sob uma realidade jurídica um pouco diferente (ainda não havia a LC 135/2010), mas já sob a égide de princípios e entendimentos que continuam norteando suas decisões.

Nota: a presente postagem é de 2010. Como se sabe, em fevereiro/2012 o STF definiu como constitucional a "Lei da Ficha Limpa", conforme noticiamos na seguinte postagem:
“LEI DA FICHA LIMPA”: JULGAMENTO HISTÓRICO
 

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