A “LEI FICHA LIMPA” E A JURISPRUDÊNCIA DO STF
Foi publicada hoje (07/06/2010) a chamada
“Lei Ficha Limpa”, idealizada para barrar o acesso de políticos desonestos a
cargos eletivos. Trata-se da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010,
que introduziu profundas mudanças na Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de
1990, que estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º, da Constituição Federal,
casos de inelegibilidade e seus prazos de cessação (clique aqui
para ver a LC 135/2010).
As alterações foram muitas, porém queremos
aqui nos deter na mais polêmica delas, consistente na modificação do texto
constante no art. 1º, I, “e”, da LC nº 64/90, in verbis:
Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
[…]
e) os que forem
condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por
órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8
(oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia
popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio
público;
2. contra o patrimônio
privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que
regula a falência;
3. contra o meio
ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os
quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de
autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à
inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou
ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de
entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e
hediondos;
8. de redução à
condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a
dignidade sexual; e
10. praticados por organização
criminosa, quadrilha ou bando; […].
Ficou, portanto, claro
nesse dispositivo que a pessoa que tenha contra si decisão de órgão judicial
colegiado (qualquer tribunal componente do Poder Judiciário) condenando-a pela
prática de um dos crimes elencados será considerada inelegível (não poderá,
portanto, concorrer a qualquer cargo eletivo).
A inovação reside
justamente em não mais se exigir o trânsito em julgado da sentença condenatória,
pois a experiência demonstrou que processos criminais contra políticos
dificilmente chegam ao fim, exceto para reconhecer a extinção da punibilidade
pela prescrição.
A grande questão que se
sobrepõe é: a novel regulação é constitucional, considerando o princípio da
presunção de inocência delineado explicitamente na Constituição
Federal?
Primeiramente é pertinente
lembrar que o art. 14, § 9º, da Constituição Federal outorga à Lei Complementar
a função de estabelecer outros casos (além dos previstos na própria Carta Magna)
de inelegibilidade, conforme segue:
§ 9º. Lei complementar estabelecerá
outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a
probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada
a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições
contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo
ou emprego na administração direta ou indireta.
Em outro prisma desponta o
art. 5º, LVII, da CF, com a seguinte redação: “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Diante disso surge a
seguinte indagação: o art. 14, § 9º, da CF possibilita seja excepcionada a
aplicação do art. 5º, LVII, por intermédio de Lei Complementar?
Lembra-se, ademais, que o
art. 15, III, da CF, também exige o trânsito em julgado da condenação criminal
para perda ou suspensão de direitos políticos.
Certamente mais cedo ou
mais tarde o Supremo Tribunal Federal enfrentará a questão em
deslinde.
Cabe-nos nesse momento
apenas adiantar que nossa Corte Suprema tem até agora se posicionado
intransigentemente na defesa do princípio da presunção de inocência, ao qual foi
dada imensa amplitude pela Constituição Federal.
Aliás, no julgamento da
emblemática ADPF 144-DF, manifestou-se o STF no seguinte sentido, conforme se
extrai da ementa do decisum:
[…] RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA
FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR "OUTROS CASOS DE
INELEGIBILIDADE" - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA
CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE,
CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA
CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE
QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO "CORNERSTONE" EM QUE SE ESTRUTURA O
SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES
E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA [...]. (STF, ADPF
144-DF, Tribunal Pleno, rel. min. CELSO DE MELLO, j. 06/08/2008, DJe-035, p.
26-02-2010).
Diante disso, nota-se com clareza haver uma
nítida possibilidade (ou até mesmo tendência) do STF considerar inconstitucional
a chamada “Lei Ficha Limpa” no particular ora em análise. Aliás, lendo a íntegra
do julgamento da ADPF 144 (clique
aqui) chega-se até a vislumbrar que boa parte dos debates suscitados com o
surgimento da Lei em comento já foram enfrentados anteriormente pelo Supremo sob
uma realidade jurídica um pouco diferente (ainda não havia a LC 135/2010), mas
já sob a égide de princípios e entendimentos que continuam norteando suas
decisões.
Nota: a presente postagem é de 2010. Como se sabe, em fevereiro/2012 o STF definiu como constitucional a "Lei da Ficha Limpa", conforme noticiamos na seguinte postagem:
“LEI DA FICHA LIMPA”: JULGAMENTO HISTÓRICO
Nota: a presente postagem é de 2010. Como se sabe, em fevereiro/2012 o STF definiu como constitucional a "Lei da Ficha Limpa", conforme noticiamos na seguinte postagem:
“LEI DA FICHA LIMPA”: JULGAMENTO HISTÓRICO
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